Podia fazer uma review a este livro, podia fazer uma review a todos os livros que leio, mas para quê? As palavras do autor, ou pelo menos algumas delas, falam por si, dizem tudo o que há a dizer e ainda nos (ou pelo menos a mim) deixam a reflectir.
“
(…) o táxi arranca, o motorista quer que lhe digam, Para onde, e esta pergunta,
tão simples, tão natural, tão adequada à circunstância e ao lugar, apanha
desprevenido o viajante, como se ter comprado a passagem no Rio de Janeiro
tivesse sido e pudesse continuar a ser resposta para todas as questões, mesmo
aquelas, passadas, que em seu tempo não encontraram mais que o silêncio, agora
mal desembarcou e logo vê que não, talvez porque lhe fizeram uma das duas
perguntas fatais, Para onde, a outra, e pior, seria, Para quê.”
“Vivem em nós inúmeros, se penso ou sinto, ignoro quem é que pensa
ou sente, e, não acabando aqui, é como se acabasse, uma vez que para além de pensar
e sentir não há mais nada. “
“A evidência da morte é o véu com que a morte se disfarça”.
“E as pessoas nem sonham que quem acaba uma coisa nunca é aquele
que a começou, mesmo que ambos tenham um nome igual, que isso só é que se
mantém constante, nada mais.”
“As coisas da fisiologia são complicadas, deixemo-las para quem as
conheça, muito mais se ainda for preciso percorrer as veredas do sentimento que
existem dentro dos sacos lacrimais, averiguar, por exemplo, que diferenças
químicas haverá entre uma lágrima de tristeza e uma lágrima de alegria, decerto
aquela é mais salgada, por isso nos ardem os olhos tanto”.
“Ricardo
Reis faz um gesto com as mãos, tacteia o ar cinzento, depois, mal distinguindo
as palavras que vai traçando no papel, escreve, Aos deuses peço só que me
concedam o nada lhes pedir, e tendo escrito não soube que mais dizer, há
ocasiões assim, acreditamos na importância do que dissemos ou escrevemos até um
certo
ponto,
apenas porque não foi possível calar os sons ou apagar os traços, mas entra-nos
no corpo a tentação da mudez, a fascinação da imobilidade, estar
como estão os deuses, calados e quietos, assistindo apenas.”
“(…) são
assim os periódicos, só sabem falar do que aconteceu, quase
sempre quando já é tarde de mais para emendar os erros, os perigos e as faltas,
bom jornal seria aquele que no dia um de Janeiro de mil novecentos e catorze
tivesse anunciado o rebentar da guerra para o dia vinte e quatro de Julho,
disporíamos então de quase sete meses para conjurar a ameaça, quem sabe se não iríamos
a tempo, e melhor seria ainda se aparecesse publicada a lista dos que iriam
morrer, milhões de homens e mulheres a ler no jornal da manhã, ao café com
leite, a notícia da sua própria morte, destino marcado e a cumprir, dia, hora e
lugar, o nome por inteiro, que fariam eles sabendo que os iam matar, que faria
Fernando Pessoa se pudesse ler, dois meses antes, O autor da Mensagem morrerá
no dia trinta de Novembro próximo, de cólica hepática, talvez fosse ao médico e
deixasse de beber, talvez desmarcasse a consulta e passasse a beber o dobro,
para poder morrer antes.”
“O
espelho, este e todos, porque sempre devolve uma aparência, está protegido contra
o homem, diante dele não somos mais que estarmos, ou termos estado, como alguém
que antes de partir para a guerra de mil novecentos e catorze se admirou no uniforme
que vestia, mais do que a si mesmo se olhou, semsaber que neste espelho não tornará
a olhar-se, também é isto a vaidade, o que não tem duração. Assim é o espelho, suporta,
mas, podendo ser, rejeita. Ricardo Reis desviou os olhos, muda de lugar, vai, rejeitador
ele, ou rejeitado, virar-lhe as costas. Porventura rejeitador porque espelho também.”
"(...) porque certas
perguntas são feitas apenas para tornar mais explícita a ausência de
resposta".
“Hoje
é o último dia do ano. Em todo o mundo que este calendário rege andam as pessoas
entretidas a debater consigo mesmas as boas acções que tencionam praticar no
ano que entra, jurando que vão ser rectas, justas e equânimes, que da sua
emendada boca não voltará a sair uma palavra má, uma mentira, uma insídia,
ainda que as merecesse o inimigo, claro que é das pessoas vulgares que estamos
falando, as outras, as de excepção, as incomuns, regulam-se por razões suas
próprias para ser em e fazerem o contrário sempre que lhes apeteça ou
aproveite, essas são as que não se deixam iludir, chegam a rir-se de nós e das
boas intenções que mostramos, mas, enfim, vamos aprendendo com a experiência, logo
nos primeiros dias de Janeiro teremos esquecido metade do que havíamos
prometido, e, tendo esquecido tanto, não há realmente motivo para cumprir o
resto, é como um castelo de cartas, se já lhe faltam as obras superiores, melhor
é que caia tudo e se confundam os naipes.”
“Não
digamos, Amanhã farei, porque o mais certo é estarmos cansados amanhã, digamos
antes, Depois de amanhã, sempre teremos um dia de intervalo para mudar de
opinião e projecto, porém ainda mais prudente seria dizer, Um dia decidirei
quando será o dia de dizer depois de amanhã, e talvez nem seja preciso, se a
morte definidora vier antes desobrigar-me do compromisso, que essa, sim, é a
pior coisa do mundo, o compromisso, liberdade que a nós próprios negámos.”
“(…) finalmente
o ponteiro dos minutos cobre o ponteiro das horas, é meia-noite, a alegria duma
libertação, por um instante breve o tempo largou os homens, deixou-os viver
soltos, apenas assiste, irónico, benévolo, aí estão, abraçam-se uns aos outros,
conhecidos e desconhecidos, beijam-se homens e mulheres ao acaso, são esses os
beijos melhores, os que não têm futuro.”