segunda-feira, 8 de outubro de 2012

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Estava na paragem à espera do autocarro, a ler Caim, de José Saramago, esse grande senhor, não o senhor de que o autor fala com uma ironia, uma crítica e um sarcasmo subtilmente geniais, mas sim esse grande senhor que era Saramago, uma senhora com um ar simpático aparece e diz, Menina, posso falar um pouco consigo, enquanto espera pelo autocarro, ela tinha um ar simpático, eu acho as senhoras idosas extremamente fofinhas, apesar de saber que era uma testemunha de jeová não disse que não, e aí se deu o momento do dia que me vai servir de reflexão para o resto da semana. Ela diz, Menina, acredita em deus, Não, Mas acredita nalgum deus, Acredito no meu deus, sou espiritual, Acha que há um ser superior, portanto, mas não sabe qual é, Sim, Mas sabe que essa entidade superior tem um nome, Sim, Sabe qual é, Deus, Não minha querida, deus é um título, nomes só há um, Qual, Jeová, Hm, Quero dar-lhe a ler algumas passagens da bíblia, Está bem, e ela desfolha a bíblia, parece que sabe as páginas de cor, de trás para a frente e de frente para trás, não leva mais do que 2 segundos para chegar onde quer, dá-me a ler as passagens exactamente que descrevem o que ela me queria transmitir. Ela falou durante o tempo todo, sempre muito preocupada, Olhe o 745, não é este o seu autocarro, Não não, digo eu, com ar de quem não está muito preocupada, de 3 em 3 minutos ela diz, Olhe, não é este o seu autocarro, estava ela mais preocupada do que eu, eu que não tenho pressa para apanhar autocarro para lado nenhum, ela que acredita que eu tenho, no fundo, um destino, eu que não sei para onde vá, ela que acha que eu vou a algum lado. Claro que isto tem um sentido metafórico. Eu olhava para ela e pensava para comigo mesma, Ela tem um ar tão feliz, eu tenho um ar tão perdido, se calhar ela um dia já esteve como eu, revê-se em mim, não sabia em que acreditar, não sabia se havia de acreditar em algo ou se realmente havia algo para acreditar, não tinha nenhum autocarro para apanhar, encontrou a sua resposta na bíblia, a cara dela cheia de rugas dizem-me que muita experiência tem já, mas uns olhos brilhantes e resplandecentes de uma criança dizem-me que acabou de ver o mundo pela primeira vez e o acha maravilhoso, não consegue ver o mal, uma inocência de quem acredita profundamente naquilo que diz, numa ingenuidade profunda, feliz, uma alma completa foi o que vi naqueles olhos. Desafiei-a, Então diga-me lá, adão e eva foi quem deu origem ao mundo e ao que somos e conhecemos hoje, Sim querida, Eles reproduziram-se e tiveram dois filhos, Sim querida, E depois como é que os filhos deles se reproduziram para dar continuidade, tiveram de copular entre si, Sim, Então mas o incesto é um pecado, Sim querida mas naquela altura não era, não havia mais ninguém na terra, o senhor permitiu que assim sucedesse, como ele disse, crescei e multiplicai-vos. Não a contestei mais, apesar de achar esta uma das questões mais controversas da religião cristã, um pecado deu origem a tudo e agora é completamente condenado. Não quis destruir a ilusão nos olhos dela, mas resolvi desafiá-la novamente uns minutos mais tarde, enquanto ela falava no dia do juízo final, em que todos os maus iam morrer mas os fiéis iam ser salvos pelo senhor, e falando em todas as catástrofes mundiais, Então acha que a história do mundo se divide em fases, há pessoas, e depois há uma catástrofe, como a torre de babel que destruiu uma cidade inteira ou a inundação mundial que levou a que noé construisse a arca, e só um número limitado de pessoas merecedoras sobrevive, Sim, Também acho. Este também acho não foi de total concordância, devo dizer. Acredito que a terra tem destas fases, durante milhares de anos existem civilizações, intercaladas por grandes catástrofes a nível mundial a que ninguém, nem os bons nem os maus, sobrevivem, depois destas surgem novas civilizações. Mas não quis entrar por esses caminhos. Esse pensamento levou-me instantaneamente à teoria do eterno retorno de nietzsche, tudo retorna, tudo se repete, todos os elementos, todas as explicações, todos os acontecimentos, todas as existências. Fiquei existencialista, senti-me tentada a perguntar, Então, se tudo um dia vai acabar, porque estamos aqui, qual o sentido da existência, qual o propósito de tanto sofrimento, tanta emoção, tanta exaltação por que passamos, porquê este absurdo imenso de tudo, mas contive-me, sabia qual seria a resposta dela, Um reino de paz e amor e vida eterna, que jeová nos vai trazer de novo, onde não haverá pecado. O meu autocarro chegou. Agradeci-lhe por aquele momento, ela agradeceu-me a mim, disse, Gostei de falar consigo, é uma boa menina, talvez não acredite ainda mas deus está a olhar para si, tenha um bom dia, felicidades, Obrigada, para si também. No autocarro não ouvi música, não li, vim simplesmente a pensar, Gostei da senhora, não tentou impingir-me nada, ao contrário das outras que por aí tenho apanhado, apenas me explicou, com a maior inocência que eu já vi na vida, aquilo em que ela acredita profundamente, e foi por isso que não lhe disse, Desculpe, não tenho tempo, na maior mentira do mundo, porque, convenhamos, não tenho pressa para ir a lado nenhum, mesmo que ache que estou sempre atrasada para tudo. Pensei, novamente, E eu, ando perdida, talvez fosse melhor ser assim, crente, cega, ignorante, mas feliz de uma maneira pura, apenas por saber que tenho algum destino, algo que me espera, algo verdadeiramente superior, senti qualquer coisa no limiar da inveja, e pergunto-me, Como posso invejar alguém cujas crenças são contraditórias às minhas, se é que tenho algumas. É mais que certo e sabido que a consciência é quase sinónimo de infelicidade e angústia, quanto mais conscientes estamos mais questionamos, e quanto mais questionamos menos respostas obtemos, e esta consciência, esta exagerada consciência da transitoriedade da vida, passa pelo fenómeno do conhecimento, afinal, e se queremos ir à essência da questão, foi o conhecimento do bem e do mal que, segundo a religião cristã, trouxe o pecado e o sofrimento ao mundo, e neste ponto não posso deixar de me questionar, mais uma vez, e o que é isso do bem e do mal, o que define o bem e o mal, quais os critérios, quem decidiu, como, porquê, as mesmas questões que se aplicam a tudo o que me rodeia. Por outro lado, a ignorância, ou ignorantia em latim, de sua definição estado da mente em que não se formula qualquer juízo acerca de um objecto, é quase sinónimo de felicidade no seu estado mais puro, não conhecemos o bem mas também não conhecemos o mal, logo, não o praticamos. Ao contrário do que seria de esperar, já que quem ouvia a forma como a senhora falava de um mundo tão perfeito de uma forma tão convincente por ela mesma acreditar no que dizia, pelo menos pelos mais crentes, ainda fiquei mais céptica, pensei e repensei, Ainda estou à procura da minha resposta, uma resposta que nunca mais vem, não a encontro, com certeza, na religião, mas oh, o que eu dava na vida para ter cedido à vontade de fraquejar que senti enquanto a ouvia, se isso significasse uma vida cheia de significado e felicidade, o que eu não dava para ser ignorante, crente, e livre de angústias existencialistas. Mas o conhecimento é daquelas coisas, é como o vício, uma vez experimentado, já não se sabe o que é viver sem o objecto de vício, nem se imagina como o resto das pessoas que não têm esse vício conseguem viver. Resolvi entregar-me de novo às coisas triviais da vida, aos pensamentos mundanos, a entregar a minha candidatura para erasmus, ao desejo de diversão e evasão, ao prazer da satisfação dos prazeres imediatos.

É que isto, de pensar demais, dói. Não vivo, vou sobrevivendo, tapando buracos aqui e ali com cimento de 5ª categoria, tapam uns, abrem outros.

Escrito algures em 2010.

2 comentários:

Rafaela Rolhas disse...

Querias um comentário, aqui vai ele: tu inspiras-me. Okay, não penses que vais ter mtos mais comentários diferentes deste por várias razões: primeiro, nunca me sinto segura em varias tematicas pelo que nunca consigo dar uma opinião mto boa. Por isso nunca o faço. Segundo, porqe depois de ler o qe escreves, que mais ha a dizer? Anyways, já vi qe adoptaste a escrita do Saramago neste post. Nao sou propriamente fã dele, para ler o "memorial do convento" foi um verdadeiro suplício e realmente é um bcd complicado de se adaptar ao início, especialmente nos diálogos. Não sei, gosto de pontos finais e travessoes. Okay, dispersando-me... Numa coisa posso dar a minha opinião. "Opinião". Concordo ctg na parte do conhecimento. Não há nada melhor que aprender, no entanto, nao devo pensar tanto como tu. Penso, mas não ao ponto de ser doloroso. Oh well, gostei do post, desculpa o atraso :p Beijocas*

Claudia_LivreComoEu disse...

Rafaela, obrigada por este comentário, mas devo dizer-te que sempre que te vejo a maltratar a língua portuguesa dessa forma, dói-me por dentro.