Estava na paragem à espera do autocarro, a ler Caim, de José Saramago,
esse grande senhor, não o senhor de que o autor fala com uma ironia, uma
crítica e um sarcasmo subtilmente geniais, mas sim esse grande senhor
que era Saramago, uma senhora com um ar simpático aparece e diz, Menina,
posso falar um pouco consigo, enquanto espera pelo autocarro, ela tinha
um ar simpático, eu acho as senhoras idosas extremamente fofinhas,
apesar de saber que era uma testemunha de jeová não disse que não, e aí
se deu o momento do dia que me vai servir de reflexão para o resto da
semana. Ela diz, Menina, acredita em deus, Não, Mas acredita nalgum
deus, Acredito no meu deus, sou espiritual, Acha que há um ser superior,
portanto, mas não sabe qual é, Sim, Mas sabe que essa entidade superior
tem um nome, Sim, Sabe qual é, Deus, Não minha querida, deus é um
título, nomes só há um, Qual, Jeová, Hm, Quero dar-lhe a ler algumas
passagens da bíblia, Está bem, e ela desfolha a bíblia, parece que sabe
as páginas de cor, de trás para a frente e de frente para trás, não leva
mais do que 2 segundos para chegar onde quer, dá-me a ler as passagens
exactamente que descrevem o que ela me queria transmitir. Ela falou
durante o tempo todo, sempre muito preocupada, Olhe o 745, não é este o
seu autocarro, Não não, digo eu, com ar de quem não está muito
preocupada, de 3 em 3 minutos ela diz, Olhe, não é este o seu autocarro,
estava ela mais preocupada do que eu, eu que não tenho pressa para
apanhar autocarro para lado nenhum, ela que acredita que eu tenho, no
fundo, um destino, eu que não sei para onde vá, ela que acha que eu vou a
algum lado. Claro que isto tem um sentido metafórico. Eu olhava para
ela e pensava para comigo mesma, Ela tem um ar tão feliz, eu tenho um ar
tão perdido, se calhar ela um dia já esteve como eu, revê-se em mim,
não sabia em que acreditar, não sabia se havia de acreditar em algo ou
se realmente havia algo para acreditar, não tinha nenhum autocarro para
apanhar, encontrou a sua resposta na bíblia, a cara dela cheia de rugas
dizem-me que muita experiência tem já, mas uns olhos brilhantes e
resplandecentes de uma criança dizem-me que acabou de ver o mundo pela
primeira vez e o acha maravilhoso, não consegue ver o mal, uma inocência
de quem acredita profundamente naquilo que diz, numa ingenuidade
profunda, feliz, uma alma completa foi o que vi naqueles olhos.
Desafiei-a, Então diga-me lá, adão e eva foi quem deu origem ao mundo e
ao que somos e conhecemos hoje, Sim querida, Eles reproduziram-se e
tiveram dois filhos, Sim querida, E depois como é que os filhos deles se
reproduziram para dar continuidade, tiveram de copular entre si, Sim,
Então mas o incesto é um pecado, Sim querida mas naquela altura não era,
não havia mais ninguém na terra, o senhor permitiu que assim sucedesse,
como ele disse, crescei e multiplicai-vos. Não a contestei mais, apesar
de achar esta uma das questões mais controversas da religião cristã, um
pecado deu origem a tudo e agora é completamente condenado. Não quis
destruir a ilusão nos olhos dela, mas resolvi desafiá-la novamente uns
minutos mais tarde, enquanto ela falava no dia do juízo final, em que
todos os maus iam morrer mas os fiéis iam ser salvos pelo senhor, e
falando em todas as catástrofes mundiais, Então acha que a história do
mundo se divide em fases, há pessoas, e depois há uma catástrofe, como a
torre de babel que destruiu uma cidade inteira ou a inundação mundial
que levou a que noé construisse a arca, e só um número limitado de
pessoas merecedoras sobrevive, Sim, Também acho. Este também acho não
foi de total concordância, devo dizer. Acredito que a terra tem destas
fases, durante milhares de anos existem civilizações, intercaladas por
grandes catástrofes a nível mundial a que ninguém, nem os bons nem os
maus, sobrevivem, depois destas surgem novas civilizações. Mas não quis
entrar por esses caminhos. Esse pensamento levou-me instantaneamente à
teoria do eterno retorno de nietzsche, tudo retorna, tudo se repete,
todos os elementos, todas as explicações, todos os acontecimentos, todas
as existências. Fiquei existencialista, senti-me tentada a perguntar,
Então, se tudo um dia vai acabar, porque estamos aqui, qual o sentido da
existência, qual o propósito de tanto sofrimento, tanta emoção, tanta
exaltação por que passamos, porquê este absurdo imenso de tudo, mas
contive-me, sabia qual seria a resposta dela, Um reino de paz e amor e
vida eterna, que jeová nos vai trazer de novo, onde não haverá pecado. O
meu autocarro chegou. Agradeci-lhe por aquele momento, ela agradeceu-me
a mim, disse, Gostei de falar consigo, é uma boa menina, talvez não
acredite ainda mas deus está a olhar para si, tenha um bom dia,
felicidades, Obrigada, para si também. No autocarro não ouvi música, não
li, vim simplesmente a pensar, Gostei da senhora, não tentou
impingir-me nada, ao contrário das outras que por aí tenho apanhado,
apenas me explicou, com a maior inocência que eu já vi na vida, aquilo
em que ela acredita profundamente, e foi por isso que não lhe disse,
Desculpe, não tenho tempo, na maior mentira do mundo, porque,
convenhamos, não tenho pressa para ir a lado nenhum, mesmo que ache que
estou sempre atrasada para tudo. Pensei, novamente, E eu, ando perdida,
talvez fosse melhor ser assim, crente, cega, ignorante, mas feliz de uma
maneira pura, apenas por saber que tenho algum destino, algo que me
espera, algo verdadeiramente superior, senti qualquer coisa no limiar da
inveja, e pergunto-me, Como posso invejar alguém cujas crenças são
contraditórias às minhas, se é que tenho algumas. É mais que certo e
sabido que a consciência é quase sinónimo de infelicidade e angústia,
quanto mais conscientes estamos mais questionamos, e quanto mais
questionamos menos respostas obtemos, e esta consciência, esta exagerada
consciência da transitoriedade da vida, passa pelo fenómeno do
conhecimento, afinal, e se queremos ir à essência da questão, foi o
conhecimento do bem e do mal que, segundo a religião cristã, trouxe o
pecado e o sofrimento ao mundo, e neste ponto não posso deixar de me
questionar, mais uma vez, e o que é isso do bem e do mal, o que define o
bem e o mal, quais os critérios, quem decidiu, como, porquê, as mesmas
questões que se aplicam a tudo o que me rodeia. Por outro lado, a
ignorância, ou ignorantia em latim, de sua definição estado da mente em
que não se formula qualquer juízo acerca de um objecto, é quase sinónimo
de felicidade no seu estado mais puro, não conhecemos o bem mas também
não conhecemos o mal, logo, não o praticamos. Ao contrário do que seria
de esperar, já que quem ouvia a forma como a senhora falava de um mundo
tão perfeito de uma forma tão convincente por ela mesma acreditar no que
dizia, pelo menos pelos mais crentes, ainda fiquei mais céptica, pensei
e repensei, Ainda estou à procura da minha resposta, uma resposta que
nunca mais vem, não a encontro, com certeza, na religião, mas oh, o que
eu dava na vida para ter cedido à vontade de fraquejar que senti
enquanto a ouvia, se isso significasse uma vida cheia de significado e
felicidade, o que eu não dava para ser ignorante, crente, e livre de
angústias existencialistas. Mas o conhecimento é daquelas coisas, é como
o vício, uma vez experimentado, já não se sabe o que é viver sem o
objecto de vício, nem se imagina como o resto das pessoas que não têm
esse vício conseguem viver. Resolvi entregar-me de novo às coisas
triviais da vida, aos pensamentos mundanos, a entregar a minha
candidatura para erasmus, ao desejo de diversão e evasão, ao prazer da
satisfação dos prazeres imediatos.
É que isto, de pensar demais, dói. Não vivo, vou sobrevivendo, tapando
buracos aqui e ali com cimento de 5ª categoria, tapam uns, abrem outros.
Escrito algures em 2010.
2 comentários:
Querias um comentário, aqui vai ele: tu inspiras-me. Okay, não penses que vais ter mtos mais comentários diferentes deste por várias razões: primeiro, nunca me sinto segura em varias tematicas pelo que nunca consigo dar uma opinião mto boa. Por isso nunca o faço. Segundo, porqe depois de ler o qe escreves, que mais ha a dizer? Anyways, já vi qe adoptaste a escrita do Saramago neste post. Nao sou propriamente fã dele, para ler o "memorial do convento" foi um verdadeiro suplício e realmente é um bcd complicado de se adaptar ao início, especialmente nos diálogos. Não sei, gosto de pontos finais e travessoes. Okay, dispersando-me... Numa coisa posso dar a minha opinião. "Opinião". Concordo ctg na parte do conhecimento. Não há nada melhor que aprender, no entanto, nao devo pensar tanto como tu. Penso, mas não ao ponto de ser doloroso. Oh well, gostei do post, desculpa o atraso :p Beijocas*
Rafaela, obrigada por este comentário, mas devo dizer-te que sempre que te vejo a maltratar a língua portuguesa dessa forma, dói-me por dentro.
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