segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Supermíssimo, íssimo, íssimo, íssimo, cansaço.

O que há em mim é sobretudo cansaço
Não disto nem daquilo,
Nem sequer de tudo ou de nada:
Cansaço assim mesmo, ele mesmo,
Cansaço.

A subtileza das sensações inúteis,
As paixões violentas por coisa nenhuma,
Os amores intensos por o suposto alguém.
Essas coisas todas -
Essas e o que faz falta nelas eternamente -;
Tudo isso faz um cansaço,
Este cansaço,
Cansaço.

Há sem dúvida quem ame o infinito,
Há sem dúvida quem deseje o impossível,
Há sem dúvida quem não queira nada -
Três tipos de idealistas, e eu nenhum deles:
Porque eu amo infinitamente o finito,
Porque eu desejo impossivelmente o possível,
Porque eu quero tudo, ou um pouco mais, se puder ser,
Ou até se não puder ser...

E o resultado?
Para eles a vida vivida ou sonhada,
Para eles o sonho sonhado ou vivido,
Para eles a média entre tudo e nada, isto é, isto...
Para mim só um grande, um profundo,
E, ah com que felicidade infecundo, cansaço,
Um supremíssimo cansaço.
Íssimo, íssimo. íssimo,
Cansaço...

Fernando Pessoa

sábado, 26 de fevereiro de 2011

Se eu ficar aqui,
Se eu ficar aqui, apenas,
Ficas comigo?
E esqueces-te do resto do mundo?

sábado, 19 de fevereiro de 2011

"Desenhei, porque não tinha palavras para me expressar".


Os ditos opostos não são assim tão antagónicos, ontologicamente falando.

A felicidade pode ser angústia.
O tudo pode ser nada.
A morte pode ser vida.
O prazer pode ser dor.
O fim é, definitivamente, uma espécie de começo.
Um passo em frente significa o mesmo e leva-nos ao mesmo lugar que um passo atrás.

Há, até, acredito profundamente, um ponto onde tudo, tudo, tudo quanto há no mundo, se toca.

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Poema em linha recta.



Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.

E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cómico criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado,
Para fora da possiblidade do soco;
Eu que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu que verifico que não tenho par nisto neste mundo.

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo,
Nunca teve um acto ridículo, nunca sofreu um enxovalho,
Nunca foi senão - princípe - todos eles princípes - na vida...

Quem me dera ouvir de alguém a voz humana,
Quem confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó princípes, meus irmãos,

Arre, estou farto de semideuses!
Onde há gente no mundo?

Então só eu que é vil e erróneo nesta terra?

Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que tenho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.

Álvaro de Campos (heterónimo de Fernando Pessoa)

sábado, 12 de fevereiro de 2011

LisbonRevisted.

Nada me prende a nada.
Quero cinquenta coisas ao mesmo tempo.
Anseio com uma angústia de fome de carne
O que não sei que seja -
Definidamente pelo indefinido...
Durmo irrequieto, e vivo num sonhar irrequieto
De quem dorme irrequieto, metade a sonhar.

Fecharam-me todas as portas abstractas e necessárias.
Correram cortinas de todas as hipóteses que eu poderia ver da rua.
Não há na travessa achada o número da porta que me deram.

Acordei para a mesma vida para que tinha adormecido.
Até os meus exércitos sonhados sofreram derrota.
Até os meus sonhos se sentiram falsos ao serem sonhados.
Até a vida só desejada me farta - até essa vida...

Compreendo a intervalos desconexos;
Escrevo por lapsos de cansaço;
E um tédio que é até do tédio arroja-me à praia.
Não sei que destino ou futuro compete à minha angústia sem leme;
Não sei que ilhas do sul impossível aguardam-me naufrago;
ou que palmares de literatura me darão ao menos um verso.

Não, não sei isto, nem outra coisa, nem coisa nenhuma...
E, no fundo do meu espírito, onde sonho o que sonhei,
Nos campos últimos da alma, onde memoro sem causa
(E o passado é uma névoa natural de lágrimas falsas),
Nas estradas e atalhos das florestas longínquas
Onde supus o meu ser,
Fogem desmantelados, últimos restos
Da ilusão final,
Os meus exércitos sonhados, derrotados sem ter sido,
As minhas cortes por existir, esfaceladas em Deus.

Outra vez te revejo,
Cidade da minha infãncia pavorosamente perdida...
Cidade triste e alegre, outra vez sonho aqui...

Eu? Mas sou eu o mesmo que aqui vivi, e aqui voltei,
E aqui tornei a voltar, e a voltar.
E aqui de novo tornei a voltar?
Ou somos todos os Eu que estive aqui ou estiveram,
Uma série de contas-entes ligados por um fio-memória,
Uma série de sonhos de mim de alguém de fora de mim?

Outra vez te revejo,
Com o coração mais longínquo, a alma menos minha.

Outra vez te revejo - Lisboa e Tejo e tudo -,
Transeunte inútil de ti e de mim,
Estrangeiro aqui como em toda a parte,
Casual na vida como na alma,
Fantasma a errar em salas de recordações,
Ao ruído dos ratos e das tábuas que rangem
No castelo maldito de ter que viver...

Outra vez te revejo,
Sombra que passa através das sombras, e brilha
Um momento a uma luz fúnebre desconhecida,
E entra na noite como um rastro de barco se perde
Na água que deixa de se ouvir...

Outra vez te revejo,
Mas, ai, a mim não me revejo!
Partiu-se o espelho mágico em que me revia idêntico,
E em cada fragmento fatídico vejo só um bocado de mim -
Um bocado de ti e de mim!...


Álvaro de Campos (heterónimo de Fernando Pessoa)



Vou ver este vídeo todos os dias da minha vida.

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

Canto fúnebre.


Imagina que estás numa floresta. Está escuro. Estás nevoeiro. Não consegues ver o caminho. Não consegues ver-te a ti próprio. A única coisa que ouves é a tua respiração ofegante. De medo. Caminhas em direcção ao que pensas ser uma saída, mas cada vez te perdes mais, na verdade estás em direcção a um nada. Nada sabes do que se passa à tua volta. Ouves sons, vês sombras, vislumbres do que podem ser formas que conheces, realidades, mas não sabes. De repente, apercebes-te. Estás a andar às voltas. Então, decides parar. Nesse momento, pensas. Algo te incapacita de continuar. Não sabes se o melhor é ficar onde estás ou prosseguir. Não sabes nada de nada, talvez seja melhor não saberes, talvez seja melhor ficares na ignorância, ainda que esta te mate. O teu medo, a tua mente, o teu pensamento, o que sabes que existe mas que não conheces, incapacitam-te. Já reparaste na ironia? O que não conheces, controla-te, sem que possas fazer muito em relação a isso. Agora, a decisão é tua. Quer comeces a correr desesperada e estupidamente em direcção ao que não conheces, quer fiques exactamente no mesmo sítio, vais continuar a andar aos círculos. Vais sempre voltar ao mesmo ponto onde começaste, por onde passaste e talvez até onde paraste naquele momento.

Agora, imagina, que essa floresta, é a (tua) vida. A (tua) (in)existência.

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

As Intermitências da Morte, José Saramago - Filosofar é aprender a morrer III

Morrer é, afinal de contas, o que há de mais normal e corrente na vida, facto de pura rotina, episódio da interminável herança de pais a filhos, pelo menos desde adão e eva.

A morte conhece tudo a nosso respeito, e talvez por isso seja triste. Se é certo que nunca sorri, é só porque lhe faltam os lábios, e esta lição anatómica nos diz que, ao contrário do que os vivos julgam, o sorriso não é uma questão de dentes.

Compreende-se facilmente, um pouco de imaginação bastará, que o posto de trabalho da morte seja porventura o mais monótono de todos quantos foram criados desde que, por exclusiva culpa de deus, caim matou abel. Depois de tão deplorável acontecimento, que logo no princípio do mundo veio mostrar como é difícil viver em família, e até aos nossos dias, a cousa tinha vindo por ai fora, séculos, séculos e mais séculos, repetitiva, sem pausa, sem interrupções, sem soluções de continuidade, diferente nas múltiplas formas de passar da vida à não-vida, mas no fundo sempre igual a si mesma porque sempre igual foi também o resultado. Na verdade, nunca se viu que não morresse quem tivesse de morrer.

(…) Apesar de tudo, a morte que agora se está levantando da cadeira é uma imperatriz. Não deveria estar nesta gelada sala subterrânea, como se fosse uma enterrada viva, mas sim no cimo da mais alta montanha presidindo aos destinos do mundo, olhando com benevolência o rebanho humano, vendo como ele se move e agita em todas as direcções sem perceber que todas elas vão dar ao mesmo destino, que um passo atrás o aproximará tanto da morte como um passo em frente, que tudo é igual a tudo porque tudo terá um único fim, esse em que uma parte de ti sempre terá de pensar e que é a marca escura da tua irremediável humanidade.



Porque estamos condenados ao mesmo fim, ao mesmo destino, e porque tudo o que acontece desde a primeira vez que abrimos os olhos até à última, é um sem-sentido, um grande non-sense, um absurdo completo da espectacular e banalmente maravilhosa vida.

sábado, 5 de fevereiro de 2011

As Intermitências da Morte, José Saramago - Filosofar é aprender a morrer II

Imagine-se a perturbação, o desconcerto, a perplexidade daquele que ia para o saiu trabalho e viu de repente saltar-lhe ao caminho a morte na figura de um carteiro que nunca tocará duas vezes, a este bastar-lhe-á, se o acaso não o fez encontrar o destinatário na rua, meter a carta na caixa do inquilino em questão, ou introduzi-la, deslizando, por baixo da porta. O homem está ali parado, no meio do passeio, com a sua estupenda saúde, a sua sólida cabeça, tão sólida que nem mesmo agora lhe dói apesar do terrível choque, de repente o mundo deixou de lhe pertencer ou ele de pertencer ao mundo, passaram a estar emprestados um ao outro por oito dias, não mais que oito dias, di-lo esta carta cor violeta que resignadamente acaba de abrir, os olhos nublados de lágrimas mal conseguem decifrar o que nela esta escrito, Caro senhor, lamento comunicar-lhe que a sua vida terminará no prazo irrevogável e improrrogável de uma semana, aproveite o melhor que puder o tempo que lhe resta, sua atenta servidora, morte. A assinatura vem com inicial minúscula, o que, como sabemos, representa, de alguma forma, o seu certificado de origem. Duvida o homem, senhor fulano como lhe chamou o carteiro, portanto é do sexo masculino, e logo o confirmámos nós próprios, duvida o homem se deverá voltar para casa e desabafar com a família a irremediável pena, ou se, pelo contrário, terá de engolir as lágrimas e prosseguir o seu caminho, ir aonde o trabalho o espera, cumprir todos os dias que lhe restam, então poderá perguntar, Morte onde esteve a tua vitória, sabendo no entanto que não receberá resposta, porque a morte nunca responde, e não é porque não queira, é só porque não sabe o que há-de dizer diante da maior dor humana.


O que faríamos, o que aconteceria, como seria o mundo, se soubéssemos quando vamos morrer?

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

As Intermitências da Morte, José Saramago - Filosofar é aprender a morrer I

Eis o que o espírito que pairava sobre a água do aquário perguntou ao aprendiz de filósofo, Já pensaste se a morte será a mesma para todos os seres vivos, sejam eles animais, incluindo o ser humano, ou vegetais, incluindo a erva rasteira que se pisa e a sequoidendron giganteum com os seus cem metros de altura, será a mesma morte que mata um homem que sabe que vai morrer, e um cavalo que nunca o saberá. E tornou a perguntar, Em que momento morreu o bicho-da-seda depois de se ter fechado no casulo e posto a tranca à porta, como foi possível ter nascido a vida de uma morte da outra, a vida da borboleta da morte da lagarta, e serem o mesmo diferentemente, ou não morreu o bicho-da-seda porque está vivo na borboleta. O aprendiz de filósofo respondeu, O bicho-da-seda não morreu, a borboleta é que morrerá, depois de desovar, Já o sabia eu antes que tu tivesses nascido, disse o espírito que paira sobre as águas do aquário, O bicho-da-seda não morreu, dentro do casulo não ficou nenhum cadáver depois de a borboleta ter saído, tu o disseste, um nasceu da morte do outro, Chama-se metamorfose, toda a gente sabe do que se trata, disse condescendente o aprendiz de filósofo, Aí está uma palavra que soa bem, cheia de promessas e certezas, dizes metamorfose e segues adiante, parece que não vês que as palavras são rótulos que se pegam às cousas, não são as cousas, nunca saberás como são as cousas, nem sequer que nomes são na realidade os seus, porque os nomes que lhes deste não são mais que isso, os nomes que lhes deste, Qual de nós dois é o filósofo, Nem eu nem tu, tu não passas de um aprendiz de filosofia, e eu apenas sou o espírito que paira sobre a água do aquário, Falávamos de morte, Não da morte, das mortes, perguntei por que razão não estão morrendo os seres humanos, e os outros animais, sim, por que razão a não-morte de uns não é a não-morte de outros, quando a este peixinho vermelho se lhe acabar a vida, e tenho que avisar-te que não tardará muito se não lhe mudares a água, serás tu capaz de reconhecer na morte dele aquela outra morte de que agora pareces estar salvo, ignorando porquê, Antes, no tempo em que se morria, nas poucas vezes que me encontrei diante de pessoas que haviam falecido, nunca imaginei que a morte delas fosse a mesma de que eu um dia viria a morrer, Porque cada um de vós tem a sua própria morte, transporta consigo num lugar secreto desde que nasceu, ela pertence-te, tu pertences-lhe, E os animais, e os vegetais, Suponho que com eles se passará o mesmo, Cada qual com a sua morte, Assim é, Então as mortes são muitas, tantas como os seres vivos que existiram, existem e existirão, De certo modo, sim, Estás a contradizer-te, exclamou o aprendiz de filósofo, As mortes de cada um são mortes por assim dizer de vida limitada, subalternas, morrem com aquele a quem mataram, mas acima delas haverá outra morte maior, aquela que se ocupa do conjunto dos seres humanos desde o alvorecer da espécie, Há portanto uma hierarquia, Suponho que sim, E para os animais, desde o mais elementar protozoário à baleia azul, Também, E para os vegetais, desde o bacteriófito à sequóia gigante, esta citada antes em latim por causa do tamanho, Tanto quanto creio saber, o mesmo se passa com todos eles, Isto é, cada um com a sua morte própria, pessoal e intransmissível, Sim, E depois mais duas mortes gerais, uma para casa reino da natureza, Exacto, E acaba-se ai a distribuição hierárquica das competências delegadas por tânatos, perguntou o aprendiz de filósofo, Até onde a minha imaginação consegue chegar, ainda vejo uma última morte, a última, a suprema, Qual, Aquela que haverá de destruir o universo, essa que realmente merece o nome de morte, embora quando isso suceder já não se encontre ninguém aí para pronunciá-lo, o resto de que temos estado a falar não passa de pormenores ínfimos, de insignificâncias, Portanto, a morte não é única, concluiu desnecessariamente o aprendiz e filosofo, É o que já estou cansado de te explicar, Quer dizer, uma morte, aquela que era nossa, suspendeu a actividade, as outras, as dos animais e dos vegetais, continuam a operar, são independentes, cada uma trabalhando no seu sector, Já estás convencido, Sim, Vai então e anuncia-o a toda a gente, disse o espírito que pairava sobre a água do aquário. E foi assim que a polémica começou. (…)


Não é absolutamente deliciosa a eloquência, a sensação de continuidade, a fluidez deste discurso? :)
(depois de ler José Saramago, custa-me imenso ler textos com pontos finais a cada duas linhas e travessões para os diálogos).

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

Estava na paragem à espera do autocarro, a ler Caim, de José Saramago, esse grande senhor, não o senhor de que o autor fala com uma ironia, uma crítica e um sarcasmo subtilmente geniais, mas sim esse grande senhor que era Saramago, uma senhora com um ar simpático aparece e diz, Menina, posso falar um pouco consigo, enquanto espera pelo autocarro, ela tinha um ar simpático, eu acho as senhoras idosas extremamente fofinhas, apesar de saber que era uma testemunha de jeová não disse que não, e aí se deu o momento do dia que me vai servir de reflexão para o resto da semana. Ela diz, Menina, acredita em deus, Não, Mas acredita nalgum deus, Acredito no meu deus, sou espiritual, Acha que há um ser superior, portanto, mas não sabe qual é, Sim, Mas sabe que essa entidade superior tem um nome, Sim, Sabe qual é, Deus, Não minha querida, deus é um título, nomes só há um, Qual, Jeová, Hm, Quero dar-lhe a ler algumas passagens da bíblia, Está bem, e ela desfolha a bíblia, parece que sabe as páginas de cor, de trás para a frente e de frente para trás, não leva mais do que 2 segundos para chegar onde quer, dá-me a ler as passagens exactamente que descrevem o que ela me queria transmitir. Ela falou durante o tempo todo, sempre muito preocupada, Olhe o 745, não é este o seu autocarro, Não não, digo eu, com ar de quem não está muito preocupada, de 3 em 3 minutos ela diz, Olhe, não é este o seu autocarro, estava ela mais preocupada do que eu, eu que não tenho pressa para apanhar autocarro para lado nenhum, ela que acredita que eu tenho, no fundo, um destino, eu que não sei para onde vá, ela que acha que eu vou a algum lado. Claro que isto tem um sentido metafórico. Eu olhava para ela e pensava para comigo mesma, Ela tem um ar tão feliz, eu tenho um ar tão perdido, se calhar ela um dia já esteve como eu, revê-se em mim, não sabia em que acreditar, não sabia se havia de acreditar em algo ou se realmente havia algo para acreditar, não tinha nenhum autocarro para apanhar, encontrou a sua resposta na bíblia, a cara dela cheia de rugas dizem-me que muita experiência tem já, mas uns olhos brilhantes e resplandecentes de uma criança dizem-me que acabou de ver o mundo pela primeira vez e o acha maravilhoso, não consegue ver o mal, uma inocência de quem acredita profundamente naquilo que diz, numa ingenuidade profunda, feliz, uma alma completa foi o que vi naqueles olhos. Desafiei-a, Então diga-me lá, adão e eva foi quem deu origem ao mundo e ao que somos e conhecemos hoje, Sim querida, Eles reproduziram-se e tiveram dois filhos, Sim querida, E depois como é que os filhos deles se reproduziram para dar continuidade, tiveram de copular entre si, Sim, Então mas o incesto é um pecado, Sim querida mas naquela altura não era, não havia mais ninguém na terra, o senhor permitiu que assim sucedesse, como ele disse, crescei e multiplicai-vos. Não a contestei mais, apesar de achar esta uma das questões mais controversas da religião cristã, um pecado deu origem a tudo e agora é completamente condenado. Não quis destruir a ilusão nos olhos dela, mas resolvi desafiá-la novamente uns minutos mais tarde, enquanto ela falava no dia do juízo final, em que todos os maus iam morrer mas os fiéis iam ser salvos pelo senhor, e falando em todas as catástrofes mundiais, Então acha que a história do mundo se divide em fases, há pessoas, e depois há uma catástrofe, como a torre de babel que destruiu uma cidade inteira ou a inundação mundial que levou a que noé construisse a arca, e só um número limitado de pessoas merecedoras sobrevive, Sim, Também acho. Este também acho não foi de total concordância, devo dizer. Acredito que a terra tem destas fases, durante milhares de anos existem civilizações, intercaladas por grandes catástrofes a nível mundial a que ninguém, nem os bons nem os maus, sobrevivem, depois destas surgem novas civilizações. Mas não quis entrar por esses caminhos. Esse pensamento levou-me instantaneamente à teoria do eterno retorno de nietzsche, tudo retorna, tudo se repete, todos os elementos, todas as explicações, todos os acontecimentos, todas as existências. Fiquei existencialista, senti-me tentada a perguntar, Então, se tudo um dia vai acabar, porque estamos aqui, qual o sentido da existência, qual o propósito de tanto sofrimento, tanta emoção, tanta exaltação por que passamos, porquê este absurdo imenso de tudo, mas contive-me, sabia qual seria a resposta dela, Um reino de paz e amor e vida eterna, que jeová nos vai trazer de novo, onde não haverá pecado. O meu autocarro chegou. Agradeci-lhe por aquele momento, ela agradeceu-me a mim, disse, Gostei de falar consigo, é uma boa menina, talvez não acredite ainda mas deus está a olhar para si, tenha um bom dia, felicidades, Obrigada, para si também. No autocarro não ouvi música, não li, vim simplesmente a pensar, Gostei da senhora, não tentou impingir-me nada, ao contrário das outras que por aí tenho apanhado, apenas me explicou, com a maior inocência que eu já vi na vida, aquilo em que ela acredita profundamente, e foi por isso que não lhe disse, Desculpe, não tenho tempo, na maior mentira do mundo, porque, convenhamos, não tenho pressa para ir a lado nenhum, mesmo que ache que estou sempre atrasada para tudo. Pensei, novamente, E eu, ando perdida, talvez fosse melhor ser assim, crente, cega, ignorante, mas feliz de uma maneira pura, apenas por saber que tenho algum destino, algo que me espera, algo verdadeiramente superior, senti qualquer coisa no limiar da inveja, e pergunto-me, Como posso invejar alguém cujas crenças são contraditórias às minhas, se é que tenho algumas. É mais que certo e sabido que a consciência é quase sinónimo de infelicidade e angústia, quanto mais conscientes estamos mais questionamos, e quanto mais questionamos menos respostas obtemos, e esta consciência, esta exagerada consciência da transitoriedade da vida, passa pelo fenómeno do conhecimento, afinal, e se queremos ir à essência da questão, foi o conhecimento do bem e do mal que, segundo a religião cristã, trouxe o pecado e o sofrimento ao mundo, e neste ponto não posso deixar de me questionar, mais uma vez, e o que é isso do bem e do mal, o que define o bem e o mal, quais os critérios, quem decidiu, como, porquê, as mesmas questões que se aplicam a tudo o que me rodeia. Por outro lado, a ignorância, ou ignorantia em latim, de sua definição estado da mente em que não se formula qualquer juízo acerca de um objecto, é quase sinónimo de felicidade no seu estado mais puro, não conhecemos o bem mas também não conhecemos o mal, logo, não o praticamos. Ao contrário do que seria de esperar, já que quem ouvia a forma como a senhora falava de um mundo tão perfeito de uma forma tão convincente por ela mesma acreditar no que dizia, pelo menos pelos mais crentes, ainda fiquei mais céptica, pensei e repensei, Ainda estou à procura da minha resposta, uma resposta que nunca mais vem, não a encontro, com certeza, na religião, mas oh, o que eu dava na vida para ter cedido à vontade de fraquejar que senti enquanto a ouvia, se isso significasse uma vida cheia de significado e felicidade, o que eu não dava para ser ignorante, crente, e livre de angústias existencialistas. Mas o conhecimento é daquelas coisas, é como o vício, uma vez experimentado, já não se sabe o que é viver sem o objecto de vício, nem se imagina como o resto das pessoas que não têm esse vício conseguem viver. Resolvi entregar-me de novo às coisas triviais da vida, aos pensamentos mundanos, a entregar a minha candidatura para erasmus, ao desejo de diversão e evasão, ao prazer da satisfação dos prazeres imediatos.

É que isto, de pensar demais, dói. Não vivo, vou sobrevivendo, tapando buracos aqui e ali com cimento de 5ª categoria, tapam uns, abrem outros.

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

O Homem Duplicado, José Saramago.

~

Todos sabemos que cada dia que nasce é o primeiro para uns e será o último para outros e que, para a maioria, é só um dia mais.

O mundo não tem mais problemas que os problemas das pessoas.

(…) Sempre que aqui entrava tinha a impressão de já ter visto este mesmo gabinete noutro lugar, era como um desses sonhos que sabemos ter sonhado mas que não conseguimos recordar quando despertamos. O chão estava alcatifado, a janela tinha um cortinado de grossos panos, a secretária era ampla, de estilo antigo, moderno o cadeirão de pele negra. Tertuliano Máximo Afonso conhecia estes móveis, este cortinado, esta alcatifa, ou julgava conhecê-los, possivelmente o que lhe aconteceu foi ter lido um dia num romance ou num conto a lacónica descrição de um outro gabinete de um outro director de uma outra escola, o que, assim sendo, e no caso de vir a ser demonstrado com o texto à vista, o obrigará a substituir por uma banalidade ao alcance de qualquer pessoa de razoável memória o que até hoje tinha pensado ser uma intersecção entre a sua rotineira vida e o majestoso fluxo circular do eterno retorno.

O caos é uma ordem por decifrar (…) os algarismos não têm sentido fora de uma qualquer ordem que se lhes dê, o problema está em saber encontrá-la (…) uma ordem, e os caos sucessivos que elas formariam se as dispersássemos antes de tornar a pegá-las para organizar histórias diferentes, e as sucessivas ordens que assim iríamos obtendo, sempre deixando atrás um caos ordenado, sempre avançando para dentro de um caos por ordenar (…)

(…) o arquiconhecido fenómeno da vela que ao extinguir-se levanta uma luz ainda mais alta e insuportavelmente brilhante, insuportável só por ser a derradeira (…)

(…) uma das formas secundárias de cegueira de espírito é precisamente a estupidez (…)

(…) toda a gente sabe que nenhum homem pode ser exactamente igual a outro num mundo em que se fabricam máquinas para acordar (…)

As acções dos seres humanos, apesar de não serem já dirigidas por irresistíveis instintos hereditários, repetem-se com tão assombrosa regularidade que cremos ser lícito, sem forçar a nota, admitir a lenta mas constante formação de um novo tipo de instinto, supomos que sociocultural será a palavra adequada, o qual, induzido por variantes adquiridas de tropismos repetitivos, e desde que respondendo a idênticos estímulos, faria com que a ideia que ocorreu a um tenha necessariamente de ocorrer a outro.

(…) depois de tantas tentativas mais ou menos malogradas, alcançaríamos por fim a explicação completa dos nossos actos se nos propuséssemos dizer por que fazemos aquilo que dizemos não saber por que o fizemos.

Não sabemos tudo o que nos espera para além de cada acção nossa (…) cada segundo que passa é como uma porta que se abre para deixar entrar o que ainda não sucedeu, isso a que damos o nome de futuro, porém, desafiando a contradição do que acabou de ser dito, talvez a ideia correcta seja a de que o futuro não é mais que o tempo de que o eterno presente se alimenta.

(…) só um senso comum com imaginação de poeta poderia ter sido o inventor da roda.

(…) os inimigos não nascem da nossa vontade de os ter, mas do irresistível desejo que têm eles de nos terem a nós.

Infelizmente, o senso comum nem sempre aparece quando é necessário, não sendo poucas as vezes em que de uma ausência sua momentânea resultaram os maiores dramas e as catástrofes mais aterradoras. A prova de que o universo não foi tão bem pensado como conviria está no facto de ter o Criador mandar chamar Sol à estrela que nos ilumina. Levasse o astro-rei o nome de Senso Comum e já veríamos como andaria hoje esclarecido o espírito humano, e isto tanto no que se refere ao diurno como ao nocturno, porque, não há quem o ignore, a luz que dizemos da lua, luz da lua não é, mas sempre, e unicamente, luz do sol.

O universo, sendo embora, desde as suas origens, um sistema falto de qualquer tipo de inteligência organizativa, dispôs em todo o caso de tempo mais que suficiente para ir aprendendo com a infinita multiplicação das suas próprias experiências, de modo a culminar, como vem demonstrando o incessante espectáculo da vida, em uma infalível maquinaria de compensações que só necessitará, também ela, de um pouco mais de tempo para mostrar que qualquer pequeno atraso no funcionamento das suas engrenagens não tem a mínima importância para o essencial, tanto faz que haja que esperar um minuto ou uma hora, um ano ou um século.

(…) às vezes perguntamo-nos por que tardou tanto a felicidade a chegar, por que não veio mais cedo, mas se nos aparece de improviso, quando já não a esperávamos, então o mais provável é que não saibamos o que fazer, e não é tanto a questão de escolher entre o rir e o chorar, é a secreta angústia de pensar que talvez não consigamos estar à altura.

Ao contrário do que em geral se pensa, tomar uma decisão é uma das decisões mais fáceis deste mundo, como cabalmente se demonstra pelo facto de não fazermos mais nada que multiplicá-las ao longo de todo o santíssimo dia, porém, e aí esbarramos com o busílis da questão, elas sempre nos vêm à posteriori com os seus problemazinhos particulares, ou, para que fiquemos a entender-nos, com os seus rabos por esfolar, sendo o primeiro deles o nosso grau de capacidade para mantê-las e o segundo o nosso grau de vontade para realizá-las.

A alma humana é uma caixa donde sempre pode saltar um palhaço a fazer caretas e a deitar-nos a língua de fora, mas há ocasiões em que esse mesmo palhaço limita-se a olhar-nos por cima da borda da caixa, e se vê que, por acidente, estamos procedendo de acordo com o que é justo e honesto, acena apavoradamente com a cabeça e desaparece a pensar que ainda não somos um caso perdido.

Costuma-se dizer, Dêmos tempo ao tempo, mas aquilo que sempre nos esquecemos de perguntar é se haverá tempo para dar.

(…) sem dúvida é reconfortante que a nossa consciência nos diga, Sei quem és, mas ela própria poderá começar a duvidar de nós e do que diz, se perceber, ao redor, que as pessoas andam a passar umas às outras a incómoda pergunta, E este, quem é.


Algumas citações da obra "O Homem Duplicado", de José Saramago. Poucas palavras há para expressar a genialidade deste homem. Ou, pelo contrário, há muitas. Não caberiam todas aqui. Deixo apenas algumas que me fizeram mais sentido, que me chocaram de tanta verdade que contêm. Vivamente recomendado, todas as obras deste senhor! É alimento para o cérebro.