sexta-feira, 26 de julho de 2013

«O Ano da Morte de Ricardo Reis», José Saramago - algumas citações Parte II


Confesso que quando dei com este livro numa das minhas prateleiras, na busca espontânea de algo para ler, depois de terem passado meses desde que tinha pegado num livro fora do contexto académico, enfim, como estava a dizer, confesso que quando dei com este livro do fabuloso autor José Saramago, e sendo que a minha escolha recaiu no facto de este ser um dos livros da quase inteira colecção que tenho deste senhor e que ainda não tinha lido, as minhas expectativas eram baixas. Afinal, ao pé de um Memorial do Convento (mesmo tendo começado a ler por obrigação académica, acabei por ficar apaixonada e felicíssima por ter feito uma descoberta da literatura como esta), ao pé d'uma Viagem do Elefante, ao pé das Intermitências da Morte, dos Ensaios sobre a Cegueira e sobre a Lucidez... perto de tudo isto, que interesse tinha este livro? No início as minhas expectativas foram confirmadas, não estava a gostar, estava muito bored, estava quase a obrigar-me a ler. Mas capítulo após capítulo, após cada parágrafo de 3 páginas e meia sem um ponto afinal, fui-me apaixonando cada vez mais, tanto pela forma como pelo conteúdo, pelo estilo literário genial que me faz sentir que não estou a ler mas sim simplesmente a pensar, a forma como as palavras são usadas, a ironia, o sarcasmo, numa forma tão fluída e contínua, sem espaços para travessões desnecessários. O conteúdo, a história meio fictícia meio real, os temas abordados se uma forma única. Enfim, este livro está a revelar-se delicioso! [Já para não falar nas claras influências que isso tem na minha própria forma de escrever, que não consigo evitar parar de escrever vírgulas.]

Aqui estão mais algumas citações da minha leitura nas últimas semanas (sim, porque este livro tem quase 700 páginas, leva o seu tempo para digerir). (Na realidade, as citações que sublinhei e tomei nota são bem mais que estas, mas achei que seriam demais e resolvi escolher as melhores, na minha opinião).

" (...) um homem não vai menos perdido por caminhar em linha recta".

"Um homem deve ler de tudo, um pouco ou o que puder, não se lhe exija mais do que tanto, vista a
curteza das vidas e a prolixidade do mundo. "

"(...) e Fernando Pessoa dirá, Só estando morto assistimos, e nem disso sequer podemos estar certos,
morto sou eu e vagueio por aí, paro nas esquinas, se fossem capazes de ver-me, raros são, também pensariam que não faço mais que ver passar, não dão por mim se lhes tocar, se alguém cair não o posso levantar, e contudo eu não me sinto como se apenas assistisse, ou, se realmente assisto, não sei o que em mim assiste, todos os meus actos, todas as minhas palavras, continuam vivos, avançam para além da esquina a que me encosto, vejo-os que partem, deste lugar donde não posso sair, vejo-os, actos e palavras, e não os posso emendar, se foram expressões de um erro, explicar, resumir num acto só e numa palavra única que tudo exprimissem de mim, ainda que fosse para pôr uma negação no lugar duma dúvida, uma escuridão no lugar da penumbra, um não no lugar de um sim, ambos com o mesmo significado, e a pior de tudo talvez nem sejam as palavras ditas e os actos praticados, o pior, porque é irremediável definitivamente, é o gesto que não  fiz, a palavra que não disse, aquilo que teria dado sentido ao feito e ao dito, Se um morto se inquieta tanto, a morte não é sossego, Não há sossego no mundo, nem para os mortos nem para os vivos, Então onde está a
diferença entre uns e outros, A diferença é uma só, os vivos ainda têm tempo, mas o mesmo tempo lhes vai acabando, para dizerem a palavra, para fazerem o gesto, Que gesto, que palavra, Não sei, morre-se de a não ter dito, morre-se de não o ter feito, é disso que se morre, não de doença, e é por isso que a um morto custa tanto aceitar a sua morte, Meu caro Fernando Pessoa, você treslê, Meu caro Ricardo Reis, eu já nem leio. Duas vezes improvável, esta conversação fica registada como se tivesse acontecido, não havia outra maneira de torná-la plausível. "

"(...) de todo o tempo o mais rápido é o da paixão".

"Tem o relógio horas tão vazias que, breves mesmo, como de todas é costume dizermos, excepto aquelas a que estão destinados os episódios de significação extensa, consoante ficou a ntes demonstrado, são tão vazias, essas, que os ponteiros parece que infinitamente se arrastam, não passa a manhã, não se vai embora a tarde, a noite não acaba."

quarta-feira, 24 de julho de 2013

24072013

Esta precisão meticulosa. Da atenção excessiva aos fenómenos de causa-efeito. O que causou o quê, o que levou a quê, em torno do que gira o mundo, que interacções e relações em si contém.

Exploro de forma intensiva e extensiva, em tudo o que me rodeia, me compõe e o que respiro, o que sou, o que faz com que seja quem e o que sou, o que leva ao que acontece e o desenrolar dos eventos, porquê?

Creio sem qualquer dúvida em pequenas coisas, absurdas e sem o mínimo sentido, pela pura, impulsiva, diria mesmo instintiva necessidade de simplesmente poder compreender, saber, aprender, explicar, descrever e, em última análise, objectivo derradeiro, predizer. Assim, na minha busca constante pelo poder preditivo e intensa vontade de tudo poder controlar, crio energias em meu redor. Acabo por me auto-condicionar, com um sistema de crenças fortemente enraízadas, crenças que me dominam e, no fundo, identificam, como pano de fundo. Faço-o de um modo simultaneamente consciente e inconsciente, sei o que faço sem saber
bem o porquê, sem entender realmente as minhas próprias motivações.

E assim, perco-me, em mim mesma, como numa espiral, hora após hora, dia após dia, semana após semana, por momentos nem sinto que o tempo realmente passa, penso ao invés que o tempo é algo que simplesmente é.

Acabo por ser eu apenas, na minha expressão mais pura, do que eu sou, sem rodeios.

[https://www.youtube.com/watch?v=hlCn9_3Ip7k]

domingo, 7 de julho de 2013

«O Ano da Morte de Ricardo Reis», José Saramago - algumas citações



 Podia fazer uma review a este livro, podia fazer uma review a todos os livros que leio, mas para quê? As palavras do autor, ou pelo menos algumas delas, falam por si, dizem tudo o que há a dizer e ainda nos (ou pelo menos a mim) deixam a reflectir.

“ (…) o táxi arranca, o motorista quer que lhe digam, Para onde, e esta pergunta, tão simples, tão natural, tão adequada à circunstância e ao lugar, apanha desprevenido o viajante, como se ter comprado a passagem no Rio de Janeiro tivesse sido e pudesse continuar a ser resposta para todas as questões, mesmo aquelas, passadas, que em seu tempo não encontraram mais que o silêncio, agora mal desembarcou e logo vê que não, talvez porque lhe fizeram uma das duas perguntas fatais, Para onde, a outra, e pior, seria, Para quê.”

“Vivem em nós inúmeros, se penso ou sinto, ignoro quem é que pensa ou sente, e, não acabando aqui, é como se acabasse, uma vez que para além de pensar e sentir não há mais nada. “

“A evidência da morte é o véu com que a morte se disfarça”.

“E as pessoas nem sonham que quem acaba uma coisa nunca é aquele que a começou, mesmo que ambos tenham um nome igual, que isso só é que se mantém constante, nada mais.”

“As coisas da fisiologia são complicadas, deixemo-las para quem as conheça, muito mais se ainda for preciso percorrer as veredas do sentimento que existem dentro dos sacos lacrimais, averiguar, por exemplo, que diferenças químicas haverá entre uma lágrima de tristeza e uma lágrima de alegria, decerto aquela é mais salgada, por isso nos ardem os olhos tanto”.

“Ricardo Reis faz um gesto com as mãos, tacteia o ar cinzento, depois, mal distinguindo as palavras que vai traçando no papel, escreve, Aos deuses peço só que me concedam o nada lhes pedir, e tendo escrito não soube que mais dizer, há ocasiões assim, acreditamos na importância do que dissemos ou escrevemos até um certo
ponto, apenas porque não foi possível calar os sons ou apagar os traços, mas entra-nos no corpo a tentação da mudez, a fascinação da imobilidade, estar como estão os deuses, calados e quietos, assistindo apenas.”

“(…) são assim os periódicos, só sabem falar do que aconteceu, quase sempre quando já é tarde de mais para emendar os erros, os perigos e as faltas, bom jornal seria aquele que no dia um de Janeiro de mil novecentos e catorze tivesse anunciado o rebentar da guerra para o dia vinte e quatro de Julho, disporíamos então de quase sete meses para conjurar a ameaça, quem sabe se não iríamos a tempo, e melhor seria ainda se aparecesse publicada a lista dos que iriam morrer, milhões de homens e mulheres a ler no jornal da manhã, ao café com leite, a notícia da sua própria morte, destino marcado e a cumprir, dia, hora e lugar, o nome por inteiro, que fariam eles sabendo que os iam matar, que faria Fernando Pessoa se pudesse ler, dois meses antes, O autor da Mensagem morrerá no dia trinta de Novembro próximo, de cólica hepática, talvez fosse ao médico e deixasse de beber, talvez desmarcasse a consulta e passasse a beber o dobro, para poder morrer antes.”


“O espelho, este e todos, porque sempre devolve uma aparência, está protegido contra o homem, diante dele não somos mais que estarmos, ou termos estado, como alguém que antes de partir para a guerra de mil novecentos e catorze se admirou no uniforme que vestia, mais do que a si mesmo se olhou, semsaber que neste espelho não tornará a olhar-se, também é isto a vaidade, o que não tem duração. Assim é o espelho, suporta, mas, podendo ser, rejeita. Ricardo Reis desviou os olhos, muda de lugar, vai, rejeitador ele, ou rejeitado, virar-lhe as costas. Porventura rejeitador porque espelho também.”


"(...) porque certas perguntas são feitas apenas para tornar mais explícita a ausência de resposta".

Hoje é o último dia do ano. Em todo o mundo que este calendário rege andam as pessoas entretidas a debater consigo mesmas as boas acções que tencionam praticar no ano que entra, jurando que vão ser rectas, justas e equânimes, que da sua emendada boca não voltará a sair uma palavra má, uma mentira, uma insídia, ainda que as merecesse o inimigo, claro que é das pessoas vulgares que estamos falando, as outras, as de excepção, as incomuns, regulam-se por razões suas próprias para ser em e fazerem o contrário sempre que lhes apeteça ou aproveite, essas são as que não se deixam iludir, chegam a rir-se de nós e das boas intenções que mostramos, mas, enfim, vamos aprendendo com a experiência, logo nos primeiros dias de Janeiro teremos esquecido metade do que havíamos prometido, e, tendo esquecido tanto, não há realmente motivo para cumprir o resto, é como um castelo de cartas, se já lhe faltam as obras superiores, melhor é que caia tudo e se confundam os naipes.”

“Não digamos, Amanhã farei, porque o mais certo é estarmos cansados amanhã, digamos antes, Depois de amanhã, sempre teremos um dia de intervalo para mudar de opinião e projecto, porém ainda mais prudente seria dizer, Um dia decidirei quando será o dia de dizer depois de amanhã, e talvez nem seja preciso, se a morte definidora vier antes desobrigar-me do compromisso, que essa, sim, é a pior coisa do mundo, o compromisso, liberdade que a nós próprios negámos.”

“(…) finalmente o ponteiro dos minutos cobre o ponteiro das horas, é meia-noite, a alegria duma libertação, por um instante breve o tempo largou os homens, deixou-os viver soltos, apenas assiste, irónico, benévolo, aí estão, abraçam-se uns aos outros, conhecidos e desconhecidos, beijam-se homens e mulheres ao acaso, são esses os beijos melhores, os que não têm futuro.”