Abel tinha o seu gado, caim o seu agro e, como mandavam a tradição e a obrigação religiosa, oferecerão ao senhor as primícias do seu trabalho, queimando abel a delicada carne do seu cordeiro, e caim os produtos da terra, umas quantas espigas e sementes. Sucedeu então algo até hoje inexplicado. O fumo da carne oferecida por abel subiu a direito até desaparecer no espaço infinito, sinal que o senhor aceitava o sacrifício e nele se comprazia, mas o fumo dos vegetais de caim, cultivados com um amor pelo menos igual, não foi longe, disperçou-se logo ali, a pouca altura do sol, o que significa que o senhor o rejeitava sem qualquer contemplação. Inquieto, perplexo, caim propôs a abel que trocassem de lugar, podia ser que houvesse ali uma corrente de ar que fosse a causa do distúrbio, e assim fizeram, mas o resultado foi o mesmo. Estava claro, o senhor desdenhava caim. Foi então que o verdadeiro carácter de abel veio ao de cima. Em lugar de se compadecer do desgosto do irmão e consolá-lo, escarneceu dele, e, como se isso ainda não fosse pouco, desatou a enaltecer a sua própria pessoa, proclamando-se, perante o atónito e desconcertado caim, como o favorito do senhor, como o eleito de deus. O infeliz caim não teve outro remédio que engolir a afronta e voltar ao trabalho. A cena repetiu-se, invariável, durante uma semana, sempre um fumo que subia, sempre um fumo que podia tocar-se com a mão e logo se desfazia no ar. E sempre a falta de piedade de abel, os dichotes de abel, o desprezo de abel. Um dia caim pediu ao irmão que o acompanhasse a um vale próximo (...) e ali, com as suas próprias mãos, o matou a golpes de uma queixada de jumento, que havia escondido antes no silvado, portanto com a leivosa premeditação. Foi nesse exacto momento, isto é, atrasado em relação aos acontecimentos, que a voz do senhor soou, e não só soou ela como apareceu ele. (...) Que fizeste com o teu irmão, perguntou, e caim respondeu com outra pergunta, Era eu o guarda-costas do meu irmão, Mataste-o, Assim é, mas o primeiro culpado és tu, eu daria a vida pela vida dele se tu não tivesses destruído a minha, Quis pôr-te à prova, E tu quem és para pôr à prova o que tu mesmo criaste, Sou o dono soberano de todas as coisas, E de todos os seres, dirás, mas não de mim nem da minha liberdade, Liberdade para matar, Como tu foste livre para deixar que eu matasse abel quando estava na tua mão evitá-lo, bastaria que por um momento abandonasses a soberba da infabilidade que partilhas com todos os outros deuses, bastaria que por um momento fosses realmente misericordioso, que aceitasses a minha oferenda com humildade, só porque não deverias atrever-te a recusá-la, os deuses, e tu como todos os outros, têm deveres para com aqueles que dizem ter criado, Esse discurso é sedicioso, É possível que o seja, mas garanto-te que, se eu fosse deus, todos os dias diria Abençoados sejam os que escolheram a sedição porque deles será o reino da terra, Sacrilégio, Será, mas em todo o caso, nunca maior que o teu, que permitiu que abel morresse, Tu é que o mataste, Sim, é verdade, eu fui o braço executor, mas a sentença foi ditada por ti, O sangue que aí está não o fiz verter eu, caim podia ter escolhido entre o mal e o bem, se escolheu o mal pagará por isso, Tão ladrão é aquele que vai à missa como o que fica a vigiar o guarda, disse caim, E se esse sangue reclama vingança, insistiu deus, Se é assim, vingar-te-ás ao mesmo tempo de uma morte real e de outra que não chegou a haver, Explica-te, Não gostarás do que vais ouvir, Que isso não te importe, Fala, É simples, matei abel porque não podia matar-te a ti, pela intenção estás morto, Compreendo o que queres dizer, mas a morte está vedada aos deuses, Sim, embora devessem carregar com todos os crimes cometidos em seu nome ou por sua causa, Deus está inocente, tudo seria igual se não existisses, Mas eu, quando matei, poderei ser morto por qualquer pessoa que me encontre, Não será assim, farei um acordo contigo, Um acordo com um réprobo, perguntou caim, mal acreditava no que acabara de ouvir, Diremos que é um acordo de responsabilidade partilhada pela morte de abel, Reconheces então a tua parte de culpa, Reconheço, mas não digas a ninguém, será um segredo entre deus e caim, Não é certo, devo estar a sonhar, Com os deuses isso acontece muitas vezes, Por serem, como se diz, inescrutáveis os vossos desígnios, perguntou caim, Essas palavras não as disse nenhum deus que eu conheça, nunca nos passaria pela cabeça dizer que os nossos desígnios são inescrutáveis, isso foi coisa inventada por homens que presumem de ser tu cá, tu lá com a divindade, Então não serei castigado pelo meu crime, perguntou caim, A minha porção de culpa não absolve a tua, terás o teu castigo, Qual, Andarás errante e perdido pelo mundo, Sendo assim qualquer pessoa me poderá matar, Não, porque porei um sinal na tua testa, ninguém te fará mal, mas, em pago da minha benevolência, procura tu não fazer mal a ninguém, disse o senhor, tocando com o dedo indicador na testa de caim, onde apareceu uma pequena mancha negra, Este é o sinal da tua condenação, mas é também o sinal de que estarás toda a vida sob a minha protecção e sob a minha censura, vigiar-te-ei onde quer que estejas, Aceito, disse caim, Não terias outro remédio, Quando principia o meu castigo, Agora mesmo, Poderei despedir-me dos meus pais, perguntou caim, Isso é contigo, em assuntos de família não me meto, mas com certeza vão querer saber onde está abel, e suponho que não lhe irás dizer que o mataste, Não, Não, quê, Não me despedirei dos meus pais, Então parte. Não havia mais nada a dizer. O senhor desapareceu antes que caim tivesse dado o primeiro passo. A cara de abel estava coberta de moscas, havia moscas nos seus olhos abertos, moscas na comissura dos lábios, moscas nas feridas que tinha sofrido nas mãos quando as levantara para se proteger dos golpes. Pobre abel, a quem deus tinha enganado. O senhor havia feito uma péssima escolha para a inauguração do jardim do edén, no jogo da roleta posto a correr todos tinham perdido, no tiro ao alvo, cegos, ninguém havia acertado. A eva e adão ainda restava a possibilidade de gerarem um filho para compensarem a perda do assassinado, mas bem triste há-de ser a gente sem outra finalidade na vida que a de fazer filhos sem saber porquê nem para quê. Para continuar a espécie, dizem aqueles que crêem num objectivo final, numa razão última, embora não tenham nenhuma ideia sobre quais sejam e que nunca se perguntarem em nome de que terá a espécie que continuar como se fosse ela a única e derradeira esperança do universo. Ao matar abel, por não poder matar o senhor, caim deu já a sua resposta. Não se augure nada bom da vida futura desse homem.
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