terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

O Homem Duplicado, José Saramago.

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Todos sabemos que cada dia que nasce é o primeiro para uns e será o último para outros e que, para a maioria, é só um dia mais.

O mundo não tem mais problemas que os problemas das pessoas.

(…) Sempre que aqui entrava tinha a impressão de já ter visto este mesmo gabinete noutro lugar, era como um desses sonhos que sabemos ter sonhado mas que não conseguimos recordar quando despertamos. O chão estava alcatifado, a janela tinha um cortinado de grossos panos, a secretária era ampla, de estilo antigo, moderno o cadeirão de pele negra. Tertuliano Máximo Afonso conhecia estes móveis, este cortinado, esta alcatifa, ou julgava conhecê-los, possivelmente o que lhe aconteceu foi ter lido um dia num romance ou num conto a lacónica descrição de um outro gabinete de um outro director de uma outra escola, o que, assim sendo, e no caso de vir a ser demonstrado com o texto à vista, o obrigará a substituir por uma banalidade ao alcance de qualquer pessoa de razoável memória o que até hoje tinha pensado ser uma intersecção entre a sua rotineira vida e o majestoso fluxo circular do eterno retorno.

O caos é uma ordem por decifrar (…) os algarismos não têm sentido fora de uma qualquer ordem que se lhes dê, o problema está em saber encontrá-la (…) uma ordem, e os caos sucessivos que elas formariam se as dispersássemos antes de tornar a pegá-las para organizar histórias diferentes, e as sucessivas ordens que assim iríamos obtendo, sempre deixando atrás um caos ordenado, sempre avançando para dentro de um caos por ordenar (…)

(…) o arquiconhecido fenómeno da vela que ao extinguir-se levanta uma luz ainda mais alta e insuportavelmente brilhante, insuportável só por ser a derradeira (…)

(…) uma das formas secundárias de cegueira de espírito é precisamente a estupidez (…)

(…) toda a gente sabe que nenhum homem pode ser exactamente igual a outro num mundo em que se fabricam máquinas para acordar (…)

As acções dos seres humanos, apesar de não serem já dirigidas por irresistíveis instintos hereditários, repetem-se com tão assombrosa regularidade que cremos ser lícito, sem forçar a nota, admitir a lenta mas constante formação de um novo tipo de instinto, supomos que sociocultural será a palavra adequada, o qual, induzido por variantes adquiridas de tropismos repetitivos, e desde que respondendo a idênticos estímulos, faria com que a ideia que ocorreu a um tenha necessariamente de ocorrer a outro.

(…) depois de tantas tentativas mais ou menos malogradas, alcançaríamos por fim a explicação completa dos nossos actos se nos propuséssemos dizer por que fazemos aquilo que dizemos não saber por que o fizemos.

Não sabemos tudo o que nos espera para além de cada acção nossa (…) cada segundo que passa é como uma porta que se abre para deixar entrar o que ainda não sucedeu, isso a que damos o nome de futuro, porém, desafiando a contradição do que acabou de ser dito, talvez a ideia correcta seja a de que o futuro não é mais que o tempo de que o eterno presente se alimenta.

(…) só um senso comum com imaginação de poeta poderia ter sido o inventor da roda.

(…) os inimigos não nascem da nossa vontade de os ter, mas do irresistível desejo que têm eles de nos terem a nós.

Infelizmente, o senso comum nem sempre aparece quando é necessário, não sendo poucas as vezes em que de uma ausência sua momentânea resultaram os maiores dramas e as catástrofes mais aterradoras. A prova de que o universo não foi tão bem pensado como conviria está no facto de ter o Criador mandar chamar Sol à estrela que nos ilumina. Levasse o astro-rei o nome de Senso Comum e já veríamos como andaria hoje esclarecido o espírito humano, e isto tanto no que se refere ao diurno como ao nocturno, porque, não há quem o ignore, a luz que dizemos da lua, luz da lua não é, mas sempre, e unicamente, luz do sol.

O universo, sendo embora, desde as suas origens, um sistema falto de qualquer tipo de inteligência organizativa, dispôs em todo o caso de tempo mais que suficiente para ir aprendendo com a infinita multiplicação das suas próprias experiências, de modo a culminar, como vem demonstrando o incessante espectáculo da vida, em uma infalível maquinaria de compensações que só necessitará, também ela, de um pouco mais de tempo para mostrar que qualquer pequeno atraso no funcionamento das suas engrenagens não tem a mínima importância para o essencial, tanto faz que haja que esperar um minuto ou uma hora, um ano ou um século.

(…) às vezes perguntamo-nos por que tardou tanto a felicidade a chegar, por que não veio mais cedo, mas se nos aparece de improviso, quando já não a esperávamos, então o mais provável é que não saibamos o que fazer, e não é tanto a questão de escolher entre o rir e o chorar, é a secreta angústia de pensar que talvez não consigamos estar à altura.

Ao contrário do que em geral se pensa, tomar uma decisão é uma das decisões mais fáceis deste mundo, como cabalmente se demonstra pelo facto de não fazermos mais nada que multiplicá-las ao longo de todo o santíssimo dia, porém, e aí esbarramos com o busílis da questão, elas sempre nos vêm à posteriori com os seus problemazinhos particulares, ou, para que fiquemos a entender-nos, com os seus rabos por esfolar, sendo o primeiro deles o nosso grau de capacidade para mantê-las e o segundo o nosso grau de vontade para realizá-las.

A alma humana é uma caixa donde sempre pode saltar um palhaço a fazer caretas e a deitar-nos a língua de fora, mas há ocasiões em que esse mesmo palhaço limita-se a olhar-nos por cima da borda da caixa, e se vê que, por acidente, estamos procedendo de acordo com o que é justo e honesto, acena apavoradamente com a cabeça e desaparece a pensar que ainda não somos um caso perdido.

Costuma-se dizer, Dêmos tempo ao tempo, mas aquilo que sempre nos esquecemos de perguntar é se haverá tempo para dar.

(…) sem dúvida é reconfortante que a nossa consciência nos diga, Sei quem és, mas ela própria poderá começar a duvidar de nós e do que diz, se perceber, ao redor, que as pessoas andam a passar umas às outras a incómoda pergunta, E este, quem é.


Algumas citações da obra "O Homem Duplicado", de José Saramago. Poucas palavras há para expressar a genialidade deste homem. Ou, pelo contrário, há muitas. Não caberiam todas aqui. Deixo apenas algumas que me fizeram mais sentido, que me chocaram de tanta verdade que contêm. Vivamente recomendado, todas as obras deste senhor! É alimento para o cérebro.

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